sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Entrevista com Iracema Macedo à revista Verbo 21.


Iracema Macedo (Natal, 1970) é poeta e professora de filosofia do IFF-Cabo Frio, RJ. Licenciou-se em Filosofia pela UFRN em 1991, concluiu mestrado na mesma área na UFPB, em 1995, e defendeu doutorado em Filosofia na Unicamp, em 2003. Publicou os livros de poesia Lance de dardos, Edições Estúdio 53, Rio de Janeiro, 2000; Invenção de Eurídice, Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2000; Poemas inéditos e escolhidos, Sebo Vermelho, Natal, 2010. Em 2006, lançou sua tese de doutorado: Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos, Annablume, São Paulo, 2006. Viveu em Ouro Preto por vários anos e trabalhou como professora pesquisadora da CAPES junto ao Departarmento de Filosofia da UFMG, em Belo Horizonte (2003-2007), e como professora visitante do Departamento de Filosofia da UERJ (2007-2008). Recebeu os seguintes prêmios literários no Rio Grande do Norte: Othoniel Menezes (1992), Myriam Coeli (1992) e Auta de Souza (1994). Blogue: http://foliasofia.blosgpot.com

Sidnei Schneider: Em Invenção de Eurídice, reconstróis a partir do título, derivado de Invenção de Orfeu do poeta Jorge de Lima, um inventário de vozes femininas da mitologia grega, atualizando-as, junto a outras como as de Laura, Beatriz e Salomé. Ainda que existam alguns poemas relativos a Ouro Preto, tem-se a impressão de um livro tematicamente planejado. Sabemos, no entanto, que nem sempre é assim. Como se deu a sua construção? E de que modo o relacionas com o livro anterior?

Iracema Macedo: O título desse livro foi uma maneira de declarar a paixão que sinto pela poesia de Jorge de Lima. Leitura sagrada e fecundante para mim. Em relação ao livro anterior, há todo uma paisagem que se altera e se transfigura. A maioria dos poemas desse livro são as marcas de alguém que vivia diante do mar nordestino e foi morar em meio às montanhas mineiras. A ideia do mito, como recurso para o eu lírico, é claramente o reflexo de um momento em que me deparei, nos estudos da filosofia, com as reflexões míticas feitas por alguns pensadores da arte. O que me guiou com as referências aos mitos foi a ideia de dar mais força e universalidade às experiências reveladas pelo lirismo. Assim, não só a mitologia grega me serviu de espelho, mas também algumas outras personagens da cultura, como você citou. Para mim, a experiência mais emblemática desse livro está no poema ‘Santa Clara’ que indica uma mudança de vida, uma transformação que, de certa forma, também me ocorreu com a mudança geográfica: ‘ (...) Rasguei as certezas/ enterrei os vestidos/ e agora tenho por riqueza o vento/ que sustenta os pássaros’. Outro aspecto bem relevante para mim foi mais ou menos capturado por Affonso Romano no texto da orelha: trata-se de uma Eurídice que se inventa e se salva ela própria. Não é Orfeu que tenta resgatá-la, é ela mesma que, como no desenho da capa, feito por Romã Fernandes, transforma seus cabelos nas cordas de uma lira e volta à vida.

SS: Na tua obra, o eu lírico feminino é preponderante, claramente construído desde o ponto de vista de uma mulher. Ainda que por vezes não explícito, sua constância faz que paire sobre o texto, mesmo em Dioniso diante de Apolo (Vem, amigo, vem ver/ como, mesmo diante do sangue,/ tornamos bela/ a dor para esses gregos). Tua poesia reverencia Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Elisabeth Bishop, e faz pensar em poetas como Gilka Machado, Cecília Meireles, Adélia Prado, Orides Fontela e outras. Se não vivemos mais a antiga segmentação (pelo menos fora da mídia comercial), que pretendia restringir a recepção da poesia feita por mulheres ao público feminino, como percebes o teu trabalho ante o caudal das desbravadoras brasileiras?

IM: Essa tessitura de vozes femininas aparece, a meu ver, no âmbito mesmo da leitura desses autores que você citou. Na verdade, à exceção dos escritores estrangeiros, esses poetas mencionados são a base mais forte das leituras que fiz e faço. Adélia Prado foi o meu encontro inicial com a poesia feita por mulheres. Ela esteve em Natal quando eu ainda tinha dezessete anos, era a primeira vez que eu via e ouvia uma poeta de verdade, de carne e osso. Fiquei entusiasmada. Achei-a poética em tudo, no sotaque mineiro, nos cabelos que ela já ousava deixar brancos. Conheci seus versos e respirei aquele ar de coisas insuspeitadas, aprendi muito: “o pinicado da chuva na sombrinha”; “ os mortos deixando os remédios pela metade”; “os mosquitos na cozinha como pessoas da casa admitidos”. Cada verso tornava o mundo prosaico que me cercava mais poético, mais pleno, mais enriquecido. Na verdade, comecei a escrever com um tom muito forte de Adélia. Sofri o impacto da influência. E Adélia tinha, por sua vez, algo de Drummond. Então eu fui entrando nessas águas, fui sendo banhada por essas letras. Digamos que sou mais uma a acrescentar versos para essa tradição de versos brasileiros que tornam visíveis a condição humana na nossa paisagem. Sou apenas uma a mais que se soma a essa grande correnteza. Participar desse mundo de palavras me tornou a pessoa que sou. Me sinto feita dessa matéria luminosa que os poetas inventam.

SS: Lance de dardos, dividido em quatro partes cronológicas que abarcam o período 1991-2000, trouxe poemas dignos de figurar em qualquer antologia da poesia brasileira atual, como As vestes, Dandara, Destino, ‘Desencanto’, Bilhetinho, Clito, Poema para Pedro, o Muito e outros. Revelam uma poeta de primeira linha logo no primeiro volume. Historie um pouco, como foi o processo de sua recepção?

IM: Lance de dardos reúne poemas da minha primeira safra, mais ou menos entre os 19 e 21 anos, até o que escrevi por volta dos 30. Ele foi publicado quando eu ainda tinha 29. São então dez anos de poesia. Tenho a característica de me censurar muito e excluir muita coisa e acabo publicando pouco. Gostaria de alterar isso. Mas, enfim, o livro teve uma recepção bastante fecunda. Várias pessoas escreveram sobre os poemas, fiz algum esforço para divulgá-lo pelo país e, na medida do possível, acho que foi uma recepção satisfatória. Não foi propriamente uma boa repercussão, mas me encantou a qualidade dos leitores. Eu sentia que podia confiar.

SS: A referência do título Lance de dardos, criativo e completo em si mesmo, ao poema Um lance de dados de Mallarmè, não remete, como precipitadamente se poderia supor, à poética abstratizante do tardio simbolismo francês, cara a algumas guardas. Tua poesia parece feita da relação “imediata” do corpo e da mente com a realidade e a experiência: usufrui das possibilidades sígnicas da língua sem se isolar numa linguagem despreocupada do entorno, visto ser desprovida de parentesco com aquele “coró” que “se suficienta” de que fala Manoel de Barros em Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. Nesse primeiro volume, aliás, a relação supracitada é aberta, sensual, voluptuosa. Poeta e filósofa, como vês a discussão estética sobre o tema poesia-mundo?

IM: Pois é, o título é, por assim dizer, antimallarmaico. Nada contra Mallarmè, mas a ideia era nomear poemas com forte presença do corpo, do erotismo e do lirismo. Tenho uma visão lírica da poesia no sentido de que o eu lírico torna visível algo que transcende o indivíduo que escreve. Gosto das visões mais abstratas também, mas o que consegui escrever até hoje apresenta essa tentativa de fazer o corpo falar: cabelo, unhas, dentes, garras, águas, respiração, gozo e dor. Tentar dar voz aos mundos que tornamos ou queremos tornar possíveis é algo que talvez caracterize bem a atividade da poesia e da filosofia ao longo dos séculos. Por mais que se desencontrem, na opinião de alguns poetas ou filósofos, eu tendo a pensar na cumplicidade das duas. Somos nós, figuras humanas, que pintamos e significamos os mundos que nos cercam. Filósofos e poetas trazem, frequentemente, perspectivas mais amplas sobre o que está ao nosso redor. Eles intensificam e ampliam nossa visão, ampliam também nossa escuridão, nossa incerteza, nossa cegueira. Ao lado de alguns deles aprendi que é possível conviver com o lado trágico da vida. Não precisamos entender tudo, é possível viver em estado de suspeita e dúvida.

SS: O discurso poético é anterior ao discurso lógico, o que bastaria para falar das conexões entre poesia e filosofia, já que ambas persistem. Aristóteles escreveu a primeira Poética, e hoje a referida conexão é acentuada. Contudo são discursos que se originam de um lugar distinto, cada um com o seu rigor e modo peculiar de organizar a linguagem. Como administras a produção da escrita filosófica com a de poesia?

IM: Sendo bem franca, precisei fazer um percurso acadêmico e precisei respeitar a especificidade de cada discurso. Escrevo textos acadêmicos e escrevo poemas ao mesmo tempo, respeitando o lugar de cada linguagem. O que aprendi a fazer, às vezes, foi a traduzir os discursos para poder lidar com os dois. Acho que a escrita filosófica tem grandes méritos. Há excelentes escritores filósofos (Montaigne, Nietzsche, Cioran etc), mas há também bons filósofos que não têm tanta riqueza de estilo. Sou uma professora, não tenho grandes anseios no terreno propriamente filosófico, mas gosto muito de exercer minha profissão, gosto de estudar, de dialogar, de pensar com os outros. E para o exercício do pensamento me remeto tanto a textos filosóficos quanto a textos literários. Um dos meus maiores prazeres é trabalhar a Ilíada e a Odisseia com os alunos, ou poemas de Drummond ou um livro fortíssimo como Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Entendo e aceito as diferenças de cada discurso, mas o mais importante é o discurso que acende o pensamento.

SS: Tens um tanto da Io dos gregos, condenada a correr pelo mundo, o que se pode ver em A fuga de Io (porque a dor não escolhe/ a escuridão com que vai se cobrir). Nascida e criada em Natal, viveste em João Pessoa, Ouro Preto, Belo Horizonte, Campinas, Rio de Janeiro e Cabo Frio. O despregar-se acentuaria a sensação de estrangeira e de exílio em cada novo lugar, ampliando a sensibilidade que te leva à poesia?

IM: Um amigo uma vez me disse que essa aparente fuga é, talvez, muito mais uma busca. Depois que você redigiu a pergunta, eu me dei conta de que, apesar de serem no mesmo país, são vínculos que tive e tenho em sete cidades. Em João Pessoa e Campinas, tive atividades de estudo apenas, mas em Natal e nas demais tenho uma trajetória de vida. Tenho família e amigos em Natal, muitas pessoas queridas em Minas. Vivo no Rio e trabalho em Cabo Frio. As mudanças fortes foram quando saí de Natal para Ouro Preto em 2001 e quando saí de Minas para o Rio em 2007. A primeira foi um total deslumbramento. Nunca me apaixonei tanto por uma cidade como me apaixonei por Ouro Preto. Quando vi, pela primeira vez, a cidade toda tomada pela neblina, sem que fosse possível enxergar poucos palmos à frente, tive uma sensação que deve ser parecida com a de quem vê e se banha no mar pela primeira vez. Uma sensação de pertencimento total. A vinda para o Rio foi um processo bem diferente. Talvez aqueles versos de Caetano Veloso sobre São Paulo possam traduzir isso: “Quem vem de outro sonho feliz de cidade aprende depressa a chamar-te de realidade”. Eu vinha de dois sonhos felizes: Natal e Minas. No início não tive o costumeiro encantamento pela chamada Cidade Maravilhosa. Eu precisei vir trabalhar no Rio, não sei se foi propriamente uma escolha e aí posso dizer que aprendi que minhas raízes eram minhas palavras e nada mais. O que me sustentava era a música que podia dedilhar em meus próprios cabelos, lembrando a capa de Invenção de Eurídice. Talvez na vida seja sempre assim, o ser humano acha que está protegido por algo maior quando é ele mesmo sozinho que se protege. A compreensão disso só me ocorreu aqui. Tenho aprendido a amar o Rio de Janeiro e posso dizer que é uma aprendizagem bastante poética, uma descoberta constante.

SS: Teus poemas não traficam as dificuldades e misérias humanas, todavia passam um sentimento que talvez se possa definir como de luta diante das agruras da vida, mesmo quando transitam pelo trágico ou angustioso. A flagrante sensualidade, o contrato afetivo com o leitor, a assunção da historicidade humana e do heraclitiano movimento de tudo também parecem cumprir essa função. A felicidade é guerreira?

IM: Provavelmente a felicidade é guerreira, pois guerra é ação e a ação é uma noção sem a qual não se pode pensar a felicidade, já dizia Aristóteles. Por mais difícil que possa ser esse conceito de felicidade, a ideia de que ele é inseparável da ação me parece muito coerente. Agir política e profissionalmente, artisticamente e afetivamente pode nos tornar parceiros da felicidade. Mas sou muito consciente dos contornos trágicos em que nós estamos envolvidos. De toda forma, agir é um modo de estar atento, de fazer esforço, de se humanizar, de estar junto. A literatura fala da ação, é um discurso sobre a ação, ainda que seja às vezes um discurso sobre a ação contemplativa ou onírica.

SS: Que poetas (ou livros de poesia) foram (ou são) fundamentais para ti?

IM: Acho que você mesmo percebeu isso na segunda pergunta quando mencionou algumas reverências visíveis no que escrevo. Eu só acrescentaria ainda Silvia Plath. Leio vários outros poetas, mas esses aí formam, para mim, uma fonte constante.

SS: Qual o teu primeiro contato com a poesia e quais as leituras iniciais? O trabalho poético com a mitologia grega obviamente vem de estudo e leituras, mas sendo tão forte e presente, viria também de contatos anteriores, adolescentes ou infantis?

IM: O meu primeiro contato com a poesia se deu por volta dos doze anos através de um caderno de sonetos e poemas que minha mãe copiava de revistas e jornais quando era adolescente. Um dia ela me passou esse caderno escrito com a letra dela e todo decorado e feminino como se fosse um caderno de receitas. Eram poemas de Olavo Bilac, Machado de Assis, Castro Alves, Augusto dos Anjos e outros. Comecei tentando imitar esses poemas, mas não saiu nada de bom. Já a relação com o mito aconteceu mesmo na vida adulta, com os estudos da filosofia.


Sidnei Schneider: Em Invenção de Eurídice, reconstróis a partir do título, derivado de Invenção de Orfeu do poeta Jorge de Lima, um inventário de vozes femininas da mitologia grega, atualizando-as, junto a outras como as de Laura, Beatriz e Salomé. Ainda que existam alguns poemas relativos a Ouro Preto, tem-se a impressão de um livro tematicamente planejado. Sabemos, no entanto, que nem sempre é assim. Como se deu a sua construção? E de que modo o relacionas com o livro anterior?

Iracema Macedo: O título desse livro foi uma maneira de declarar a paixão que sinto pela poesia de Jorge de Lima. Leitura sagrada e fecundante para mim. Em relação ao livro anterior, há todo uma paisagem que se altera e se transfigura. A maioria dos poemas desse livro são as marcas de alguém que vivia diante do mar nordestino e foi morar em meio às montanhas mineiras. A ideia do mito, como recurso para o eu lírico, é claramente o reflexo de um momento em que me deparei, nos estudos da filosofia, com as reflexões míticas feitas por alguns pensadores da arte. O que me guiou com as referências aos mitos foi a ideia de dar mais força e universalidade às experiências reveladas pelo lirismo. Assim, não só a mitologia grega me serviu de espelho, mas também algumas outras personagens da cultura, como você citou. Para mim, a experiência mais emblemática desse livro está no poema ‘Santa Clara’ que indica uma mudança de vida, uma transformação que, de certa forma, também me ocorreu com a mudança geográfica: ‘ (...) Rasguei as certezas/ enterrei os vestidos/ e agora tenho por riqueza o vento/ que sustenta os pássaros’. Outro aspecto bem relevante para mim foi mais ou menos capturado por Affonso Romano no texto da orelha: trata-se de uma Eurídice que se inventa e se salva ela própria. Não é Orfeu que tenta resgatá-la, é ela mesma que, como no desenho da capa, feito por Romã Fernandes, transforma seus cabelos nas cordas de uma lira e volta à vida.

SS: Na tua obra, o eu lírico feminino é preponderante, claramente construído desde o ponto de vista de uma mulher. Ainda que por vezes não explícito, sua constância faz que paire sobre o texto, mesmo em Dioniso diante de Apolo (Vem, amigo, vem ver/ como, mesmo diante do sangue,/ tornamos bela/ a dor para esses gregos). Tua poesia reverencia Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Elisabeth Bishop, e faz pensar em poetas como Gilka Machado, Cecília Meireles, Adélia Prado, Orides Fontela e outras. Se não vivemos mais a antiga segmentação (pelo menos fora da mídia comercial), que pretendia restringir a recepção da poesia feita por mulheres ao público feminino, como percebes o teu trabalho ante o caudal das desbravadoras brasileiras?

IM: Essa tessitura de vozes femininas aparece, a meu ver, no âmbito mesmo da leitura desses autores que você citou. Na verdade, à exceção dos escritores estrangeiros, esses poetas mencionados são a base mais forte das leituras que fiz e faço. Adélia Prado foi o meu encontro inicial com a poesia feita por mulheres. Ela esteve em Natal quando eu ainda tinha dezessete anos, era a primeira vez que eu via e ouvia uma poeta de verdade, de carne e osso. Fiquei entusiasmada. Achei-a poética em tudo, no sotaque mineiro, nos cabelos que ela já ousava deixar brancos. Conheci seus versos e respirei aquele ar de coisas insuspeitadas, aprendi muito: “o pinicado da chuva na sombrinha”; “ os mortos deixando os remédios pela metade”; “os mosquitos na cozinha como pessoas da casa admitidos”. Cada verso tornava o mundo prosaico que me cercava mais poético, mais pleno, mais enriquecido. Na verdade, comecei a escrever com um tom muito forte de Adélia. Sofri o impacto da influência. E Adélia tinha, por sua vez, algo de Drummond. Então eu fui entrando nessas águas, fui sendo banhada por essas letras. Digamos que sou mais uma a acrescentar versos para essa tradição de versos brasileiros que tornam visíveis a condição humana na nossa paisagem. Sou apenas uma a mais que se soma a essa grande correnteza. Participar desse mundo de palavras me tornou a pessoa que sou. Me sinto feita dessa matéria luminosa que os poetas inventam.

SS: Lance de dardos, dividido em quatro partes cronológicas que abarcam o período 1991-2000, trouxe poemas dignos de figurar em qualquer antologia da poesia brasileira atual, como As vestes, Dandara, Destino, ‘Desencanto’, Bilhetinho, Clito, Poema para Pedro, o Muito e outros. Revelam uma poeta de primeira linha logo no primeiro volume. Historie um pouco, como foi o processo de sua recepção?

IM: Lance de dardos reúne poemas da minha primeira safra, mais ou menos entre os 19 e 21 anos, até o que escrevi por volta dos 30. Ele foi publicado quando eu ainda tinha 29. São então dez anos de poesia. Tenho a característica de me censurar muito e excluir muita coisa e acabo publicando pouco. Gostaria de alterar isso. Mas, enfim, o livro teve uma recepção bastante fecunda. Várias pessoas escreveram sobre os poemas, fiz algum esforço para divulgá-lo pelo país e, na medida do possível, acho que foi uma recepção satisfatória. Não foi propriamente uma boa repercussão, mas me encantou a qualidade dos leitores. Eu sentia que podia confiar.

SS: A referência do título Lance de dardos, criativo e completo em si mesmo, ao poema Um lance de dados de Mallarmè, não remete, como precipitadamente se poderia supor, à poética abstratizante do tardio simbolismo francês, cara a algumas guardas. Tua poesia parece feita da relação “imediata” do corpo e da mente com a realidade e a experiência: usufrui das possibilidades sígnicas da língua sem se isolar numa linguagem despreocupada do entorno, visto ser desprovida de parentesco com aquele “coró” que “se suficienta” de que fala Manoel de Barros em Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. Nesse primeiro volume, aliás, a relação supracitada é aberta, sensual, voluptuosa. Poeta e filósofa, como vês a discussão estética sobre o tema poesia-mundo?

IM: Pois é, o título é, por assim dizer, antimallarmaico. Nada contra Mallarmè, mas a ideia era nomear poemas com forte presença do corpo, do erotismo e do lirismo. Tenho uma visão lírica da poesia no sentido de que o eu lírico torna visível algo que transcende o indivíduo que escreve. Gosto das visões mais abstratas também, mas o que consegui escrever até hoje apresenta essa tentativa de fazer o corpo falar: cabelo, unhas, dentes, garras, águas, respiração, gozo e dor. Tentar dar voz aos mundos que tornamos ou queremos tornar possíveis é algo que talvez caracterize bem a atividade da poesia e da filosofia ao longo dos séculos. Por mais que se desencontrem, na opinião de alguns poetas ou filósofos, eu tendo a pensar na cumplicidade das duas. Somos nós, figuras humanas, que pintamos e significamos os mundos que nos cercam. Filósofos e poetas trazem, frequentemente, perspectivas mais amplas sobre o que está ao nosso redor. Eles intensificam e ampliam nossa visão, ampliam também nossa escuridão, nossa incerteza, nossa cegueira. Ao lado de alguns deles aprendi que é possível conviver com o lado trágico da vida. Não precisamos entender tudo, é possível viver em estado de suspeita e dúvida.

SS: O discurso poético é anterior ao discurso lógico, o que bastaria para falar das conexões entre poesia e filosofia, já que ambas persistem. Aristóteles escreveu a primeira Poética, e hoje a referida conexão é acentuada. Contudo são discursos que se originam de um lugar distinto, cada um com o seu rigor e modo peculiar de organizar a linguagem. Como administras a produção da escrita filosófica com a de poesia?

IM: Sendo bem franca, precisei fazer um percurso acadêmico e precisei respeitar a especificidade de cada discurso. Escrevo textos acadêmicos e escrevo poemas ao mesmo tempo, respeitando o lugar de cada linguagem. O que aprendi a fazer, às vezes, foi a traduzir os discursos para poder lidar com os dois. Acho que a escrita filosófica tem grandes méritos. Há excelentes escritores filósofos (Montaigne, Nietzsche, Cioran etc), mas há também bons filósofos que não têm tanta riqueza de estilo. Sou uma professora, não tenho grandes anseios no terreno propriamente filosófico, mas gosto muito de exercer minha profissão, gosto de estudar, de dialogar, de pensar com os outros. E para o exercício do pensamento me remeto tanto a textos filosóficos quanto a textos literários. Um dos meus maiores prazeres é trabalhar a Ilíada e a Odisseia com os alunos, ou poemas de Drummond ou um livro fortíssimo como Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Entendo e aceito as diferenças de cada discurso, mas o mais importante é o discurso que acende o pensamento.

SS: Tens um tanto da Io dos gregos, condenada a correr pelo mundo, o que se pode ver em A fuga de Io (porque a dor não escolhe/ a escuridão com que vai se cobrir). Nascida e criada em Natal, viveste em João Pessoa, Ouro Preto, Belo Horizonte, Campinas, Rio de Janeiro e Cabo Frio. O despregar-se acentuaria a sensação de estrangeira e de exílio em cada novo lugar, ampliando a sensibilidade que te leva à poesia?

IM: Um amigo uma vez me disse que essa aparente fuga é, talvez, muito mais uma busca. Depois que você redigiu a pergunta, eu me dei conta de que, apesar de serem no mesmo país, são vínculos que tive e tenho em sete cidades. Em João Pessoa e Campinas, tive atividades de estudo apenas, mas em Natal e nas demais tenho uma trajetória de vida. Tenho família e amigos em Natal, muitas pessoas queridas em Minas. Vivo no Rio e trabalho em Cabo Frio. As mudanças fortes foram quando saí de Natal para Ouro Preto em 2001 e quando saí de Minas para o Rio em 2007. A primeira foi um total deslumbramento. Nunca me apaixonei tanto por uma cidade como me apaixonei por Ouro Preto. Quando vi, pela primeira vez, a cidade toda tomada pela neblina, sem que fosse possível enxergar poucos palmos à frente, tive uma sensação que deve ser parecida com a de quem vê e se banha no mar pela primeira vez. Uma sensação de pertencimento total. A vinda para o Rio foi um processo bem diferente. Talvez aqueles versos de Caetano Veloso sobre São Paulo possam traduzir isso: “Quem vem de outro sonho feliz de cidade aprende depressa a chamar-te de realidade”. Eu vinha de dois sonhos felizes: Natal e Minas. No início não tive o costumeiro encantamento pela chamada Cidade Maravilhosa. Eu precisei vir trabalhar no Rio, não sei se foi propriamente uma escolha e aí posso dizer que aprendi que minhas raízes eram minhas palavras e nada mais. O que me sustentava era a música que podia dedilhar em meus próprios cabelos, lembrando a capa de Invenção de Eurídice. Talvez na vida seja sempre assim, o ser humano acha que está protegido por algo maior quando é ele mesmo sozinho que se protege. A compreensão disso só me ocorreu aqui. Tenho aprendido a amar o Rio de Janeiro e posso dizer que é uma aprendizagem bastante poética, uma descoberta constante.

SS: Teus poemas não traficam as dificuldades e misérias humanas, todavia passam um sentimento que talvez se possa definir como de luta diante das agruras da vida, mesmo quando transitam pelo trágico ou angustioso. A flagrante sensualidade, o contrato afetivo com o leitor, a assunção da historicidade humana e do heraclitiano movimento de tudo também parecem cumprir essa função. A felicidade é guerreira?

IM: Provavelmente a felicidade é guerreira, pois guerra é ação e a ação é uma noção sem a qual não se pode pensar a felicidade, já dizia Aristóteles. Por mais difícil que possa ser esse conceito de felicidade, a ideia de que ele é inseparável da ação me parece muito coerente. Agir política e profissionalmente, artisticamente e afetivamente pode nos tornar parceiros da felicidade. Mas sou muito consciente dos contornos trágicos em que nós estamos envolvidos. De toda forma, agir é um modo de estar atento, de fazer esforço, de se humanizar, de estar junto. A literatura fala da ação, é um discurso sobre a ação, ainda que seja às vezes um discurso sobre a ação contemplativa ou onírica.

SS: Que poetas (ou livros de poesia) foram (ou são) fundamentais para ti?

IM: Acho que você mesmo percebeu isso na segunda pergunta quando mencionou algumas reverências visíveis no que escrevo. Eu só acrescentaria ainda Silvia Plath. Leio vários outros poetas, mas esses aí formam, para mim, uma fonte constante.

SS: Qual o teu primeiro contato com a poesia e quais as leituras iniciais? O trabalho poético com a mitologia grega obviamente vem de estudo e leituras, mas sendo tão forte e presente, viria também de contatos anteriores, adolescentes ou infantis?

IM: O meu primeiro contato com a poesia se deu por volta dos doze anos através de um caderno de sonetos e poemas que minha mãe copiava de revistas e jornais quando era adolescente. Um dia ela me passou esse caderno escrito com a letra dela e todo decorado e feminino como se fosse um caderno de receitas. Eram poemas de Olavo Bilac, Machado de Assis, Castro Alves, Augusto dos Anjos e outros. Comecei tentando imitar esses poemas, mas não saiu nada de bom. Já a relação com o mito aconteceu mesmo na vida adulta, com os estudos da filosofia.

SS: Fale um pouco sobre o cenário poético no Rio Grande do Norte.

IM: O mais instigante no cenário do Rio Grande do Norte é que há muito respeito pela poesia. Existem prêmios, existem leitores interessados, existem estudos. Isso é muito estimulante. Alguns poetas são lidos, estudados, homenageados com prêmios instituídos com seus nomes. Os jovens poetas concorrem a esses prêmios. Claro que é sempre possível fortalecer esse cenário, mas até hoje não vejo motivos para queixas no tocante à poesia. Temos alguns excelentes poetas que apareceram na cena nacional como Jorge Fernandes, na época do movimento antropofágico, e Zila Mamede, contemporânea de Drummond e Manuel Bandeira.

SS: No teu blogue há uma tag chamada Cidade Submersa: trata-se de um novo livro em andamento? Ou, o que podemos esperar da poeta Iracema Macedo?

IM: Sim, ‘Cidade submersa’ será provavelmente o título de um novo livro. O blog tem sido uma experiência completamente diferente de tudo que aconteceu antes. Publico poemas antigos e poemas novos que estou tecendo e ainda podem ser transformados. Não posso dizer que sou uma pessoa quieta, mas me sinto partilhando das dores e prazeres que imagino que todos nós partilhamos. Agora posso dizer que tenho uma certa quietude, uma certa paciência, uma certa tranquilidade em relação à publicação dos poemas. Eu até gostaria de ser um pouco mais veloz. Quero beber dessa água. Mas por enquanto meu ritmo de publicação tem sido marcado pela observação, pelo amadurecimento. Quero continuar aprendendo a lapidar as palavras, conjugá-las, quero continuar ouvindo o que está à nossa volta e tentando decifrar.

BACANTE

Em meu ninho longíquo

inicio ventos

invento cios

canto e danço em volta do fogo

transformo meu leite em vinho

e ofereço meu corpo para os lobos

(Lance de dardos)


IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas

construí com você

um amor feito alucinadamente de palavras

Meus versos seduzem os seus

seus versos aliciam os meus

Coloquei nossos livros juntos na estante

para que se toquem

e se amem clandestinamente

durante as madrugadas

(Lance de dardos)


DESTINO

Matei o gato, mamãe, matei o gato

mas o gato, mamãe, não morreu

passou o resto da vida

atravessando a sala

ensanguentado

Dona Chica não se espantou

e disse em tom muito sábio:

Esse bicho, Marília, não morre nunca

ou você foge ou finge suportá-lo

(Lance de dardos)


SANTA CLARA

Amanheci de um modo novo hoje

as luzes de sempre

não me prendem mais com suas âncoras

queimei as lanças

e fui deixando para trás

a casa, o pátio, a aldeia

docemente ensolarada


Rasguei as certezas

enterrei os vestidos

e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros

(Invenção de Eurídice)

_________

Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008) e Plano de Navegação (Dahmer, 1999).


Veja também a entrevista em: http://www.verbo21.com.br/v5/index.php?option=com_content&view=article&id=802:iracema-macedo&catid=75


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Habitar Teu Nome

A poetisa Marize Castro lançara hoje, dia 14, às 19h, no Teatro Alberto Maranhão, o seu mais novo trabalho intitulado Habitar Teu Nome. Abaixo uma entrevista com a poetisa por Sérgio Vilar.


"Com a maturidade, a poesia se tornou ainda mais necessária em minha vida"


Foto:Arquivo Pessoal/Divulgação
Marize Castro procura palavras em campos nunca habitados. Talvez por isso o perigo na ousadia da procura e na oferta do resultado. Habitar Teu Nome (Editora Una, 67 pág. R$ 20) mexe com os sentidos do leitor. E por isso, perturba, causa estranheza. É um novo mundo descortinado, escancarado em frases montadas pelas palavras escondidas. Quem desejar mergulhar no desconhecido e achar uma poesia única, versátil, o livro será lançado no pátio interno do Teatro Alberto Maranhão, às 19h.

Dois anos de intervalo entre um livro e outro. Quanto tempo você demora para lapidar uma poesia e em que momento você se decide por ela pronta?

Este é o menor intervalo que eu já fiz entre os meus livros [de poesia]. Com a maturidade, a poesia se tornou ainda mais necessária em minha vida. Não tenho mais dúvida que escrever é meu destino, buscar a palavra necessária, insubstituível, lapidá-la e mesmo assim ainda saber o que o "não dito é indizível" é o meu caminho. Quanto tempo lapidar? O tempo que for preciso. Às vezes, é necessário abandonar o texto, publicá-lo mesmo sabendo que algo se escondeu, não se deixou dizer. Talvez este algo o leitor encontre. Este é o grande lance da poesia: a participação do leitor.

Tal qual o recente livro editado pela Una, Por Cada Uma, a feminilidade se faz presente em Habitar Teu Nome, mesmo que aparentemente mais madura. Também percebi isso no último livro de Diva Cunha. Pode-se dizer que essa exposição da alma feminina é um retratoda poesia contemporânea produzida pelas poetisas, em um século onde elas ganham cada vez mais liberdade?

As mulheres século 21 estão mais próximas da sua natureza instintiva. Já podemos olhar o mundo com milhares de olhos, não mais apenas os olhos que a sociedade nos permitia. Claro que houve toda uma trajetória percorrida por outras mulheres, para sermos o que somos hoje; nos guiamos com os mapas que essas mulheres deixaram. Bem sei que outras mulheres também se guiarão pelos mapas que eu, Diva Cunha e tantas outras estamos desenhando agora. Certos homens também se guiarão com esses mapas, o que é absolutamente maravilhoso.

Ainda nessa linha, porque cinco mulheres selecionadas no Por Cada Uma? Foi coincidência ou proposital?

Foi sincronicidade. Todas são leitoras e admiradoras da poesia que eu faço e me tornei leitora e admiradora da poesia de cada uma delas. Foi uma experiência incrível, houve uma harmonia impressionante entre todas nós, tornamo-nos amigas, acho que pra toda vida.

Marrons Crepons Marfinsinfluenciou a poesia de uma época, há mais de 25 anos. E não só a poesia escrita, mas as artes visuais também beberam desse livro. Há abismos ou um caminho evolutivo entre este seu primeiro livro de poesia e o Habitar Teu Nome?

Entre Marrons Crepons Marfins e Habitar Teu Nome há uma trajetória de uma mulher que jamais parou de lutar, de se interessar pela vida, pela linguagem. O frescor de Marrons Crepons Marfins e a maturidade de Habitar Teu Nome representam integralmente minha poesia.

Nestes tempos de 140 caracteres, qual a pretensão do livro?

Ser lido.

Trecho da obra

As aranhas de Louise me fazem chorar
lembram-me jovens e grávidas fêmeas
ao sol
apoiadas em abismos
as aranhas de Louise
são mães
gigantes e leves
(ninguém duvide)
são
aves
de
bronze
com
ovos
de
mármore
fiando
em
suas
casas
de
ar
múltiplas
gotas
de
uma
única
dor


A entrevista também está disponível em: http://www.diariodenatal.com.br/2011/12/13/muito1_0.php

sábado, 29 de outubro de 2011

Entrevista com Nei Leandro de Castro


O escritor Nei Leandro de Castro esteve em Natal para participar da Ação Potiguar de Incentivo à Leitura, organizada pelos Jovens Escribas e, no dia 17 de outubro, concedeu entrevista às bolsistas do PET Julianeide Herculano e Fátima Lopes.

PET - Como nasceu o escritor? Quais suas influências?

NL - Bom, eu comecei escrevendo poesia. Eu tive uma infância normal de jogo na rua, de mergulho no rio Potengi, mergulho no poço dentão. Aos 16 anos, não sei por que, escrevi um poema e como meu pai gostava de poesia - inclusive foi ele que me deu o primeiro livro para ler, Capitães de Areia, de Jorge Amado - eu mostrei para ele. Eu estava chegando em casa, à tardinha, e meu pai estava lendo o poema para os meus irmãos, que eram uns quatro, cinco. Foi a gozação maior do mundo: “Olha é poeta!”. Parecia que estavam me chamando de “baitola” e liam meus versinhos. Eu fiquei chateadíssimo com meu pai, porque mostrei a ele confidencialmente. Passei muito tempo sem escrever depois disso, profundamente aborrecido com a brincadeira dos meus irmãos. Depois eu fui apresentado a um poeta, que era subtenente da polícia, um tio de Dorian Gray Caldas, o tenente Luis Rabelo. Foi ele que me orientou na poesia e na literatura, me emprestando muitos livros. Outro estágio, também muito importante, foi quando eu escrevi uma redação. Estudava no Atheneu, e o professor Luis Maranhão – em saudosa memória, um grande intelectual, político, foi massacrado por Sergio Fleury a pancadas, porque era do partido comunista, e também era irmão do prefeito Djalma Maranhão – publicou minha redação escolar sem dizer nada, de surpresa. A minha redação foi parar no jornal Tribuna do Norte e Newton Navarro, que era muito conhecido em Natal, publicou na coluna dele: “Nasce um escritor”. Eu quase morro de felicidade! Tinha só 16 anos. A partir daí eu tive contato com Newton, com Zila Mamede, maravilhosa, que me deu muitas indicações de leitura. Adorava essa mulher.

PET - Você escreveu poemas e romances, mas qual o gênero com que você se identifica mais?

NL - Eu escrevo poesia com mais prazer, até mesmo porque o romance é muito mais difícil, e complicado, os personagens são chatos, se metem na vida da gente, não deixam a gente dormir direito. Eu gosto de poesia e gosto mais de escrever poesia. Mas tenho visto que ultimamente as musas têm me abandonado. Não sei o que foi que eu fiz, não tenho escrito. Faz um ano que não escrevo poesia, nem prosa, só escrevo uma coluna às sextas-feiras para a Tribuna do Norte, minha única produção literária atual. Estou chateado com isso.

PET - Por que saiu de Natal para o Rio?

NL - Eu conheci o Rio em 1969, porque ganhei um prêmio literário nacional que dava direito a uma viagem à Argentina, Buenos Aires, aí eu passei pelo Rio. Me apaixonei de tal maneira pela cidade e me apaixonei por uma menina chamada Maria Alina, 18 anos; eu tinha 19. Foi uma paixão pela cidade, mais pela cidade do que por Maria Alina. Ainda hoje sou apaixonado pelo Rio. Eu gosto muito de Natal, estou sempre aqui, minha família é toda daqui, mas eu gosto muito do Rio, sou casado com uma carioca, tenho uma filha carioca, uma neta carioca, então eu gosto muito dali. Apesar dos bueiros que voam.

PET - Durante algum tempo você adotou o pseudônimo de Neil de Castro, teve algum outro?

NL - Não. Neil surgiu quando eu fui escrever no Pasquim que foi um marco, na época, para o jornalismo. Vocês são muito jovens, não sabem disso, mas marcou época mesmo, porque era um negócio de outro mundo na imprensa, pelo sarcasmo, pela inteligência, pelas pessoas que faziam o Pasquim, como Ziraldo, Millôr Fernandes, Jaguar,Henfil. Então eu cheguei lá e escrevi um artigo como Nei Leandro de Castro, aí o Ziraldo disse: “Esse nome é muito grande, sabe? Aqui tem Ziraldo, Henfil, Jaguar, e você tem três nomes, muda isso!”; aí eu mudei: “Que tal Neil de Castro?”, “Esse tá bom.”.

PET - E Nathalia de Souza?

NL - Não sei quem é. Me apresente.

PET - Você é formado em Direito, mas nunca chegou a exercer a profissão. Por quê?

NL - Graças a Deus! Eu acho um absurdo, não suporto a profissão. Me formei em Direito porque era a única faculdade em Natal que tinha como professor Luis da Câmara Cascudo, Américo de Oliveira Costa e Edgar Barbosa que eram a nata da intelectualidade. Eu fui por isso. Mas eu nunca gostei, nunca me interessei, nunca estudei. Tenho horror a Direito, a advogados, todos safados, corruptos, quase todos. Talvez seu pai não seja.

PET - Como a publicidade entrou na sua vida, o que ela significou?

NL - Importantíssima. É um meio de vida que pelo menos no Rio dá dinheiro. Todos os bens materiais que conquistei foram através da propaganda. Além de tudo, eu redigia, criava e isso é bom, ganhar bem escrevendo. Trabalhei quase 30 anos na propaganda, em grandes agências do Rio.

PET - Em 1980 concorreu ao prêmio Casa de las Americas. Conte-nos sobre esse episódio:

NL - Foi algo que me deixou profundamente decepcionado. Uma das maiores decepções da minha vida. Quem me contou foi João Ubaldo, que era do júri do Casa de las Américas. Um prêmio maravilhoso que, além de tudo, tornaria o meu livro conhecido por toda América. Então eu ganhei esse prêmio com um livro chamado As margens do Rio e, quando todo mundo votou, o Antonio Candido, um critico literário que tem uns 80 anos mais ou menos, chegou lá e disse “Olha, deixe eu dizer uma coisa a vocês, a Casa de las Americas está dando pela primeira vez um prêmio em Língua Portuguesa e pensem bem, esse livro é bom, mas é cheio que palavrões, nós vamos ficar mal afamados se esse livro for premiado.” E tiraram meu prêmio. Eu achei um absurdo, uma tremenda sacanagem. Foi a maior decepção da minha vida. Não quero saber desse sujeito, um cretino, moralista.

PET - Conte-nos sobre o prêmio da revista Playboy.

NL - Esse foi ótimo. Ganhei um carro que hoje seria num valor de 45 mil reais. Por um conto. Já pensou? Estava almoçando em minha casa, no Rio, com a minha família, aí eu recebo um telefonema: “Olha, é da Playboy, você acaba de ganhar o prêmio”, então eu disse: “Deixa de conversa, quem é que está falando?”,“É a revista Playboy, e você acaba de ganhar o prêmio, nós estamos lhe comunicando.” . Ganhei um carro, um “super estilo”. Peguei a chave do meu carro e disse “Minha filha você acaba de ganhar um carro” e ela: “Por que meu pai?” “Porque eu ganhei um melhor.”

PET - O erotismo é marca constante em sua obra. Fale um pouco sobre isso.

NL - Eu gosto muito. Minha mãe queria que eu fosse padre. Hoje já pensou Frei Leandro? O poder de sedução das mulheres sobre Frei Leandro? Seria uma loucura. É um tema recorrente em mim e eu gosto muito. Sou apaixonado pelas mulheres, adoro as mulheres, acho a coisa mais linda. Eu não diria como Lula, o presidente intelectual, que disse que “A mulher é a obra mais prima da natureza”. Para mim ela é mais tia ou mais sobrinha.

PET - As pelejas de Ojuara é o seu romance mais conhecido. Como nasceu esse herói?

NL - Curioso. Veja, eu só tinha na minha cabeça uma ideia. Um homem manobrado pela mulher chamado Araújo que depois de uma reviravolta na vida dele, se desdobra e mudava o nome de Araújo para Ojuara. Claro que eu li muita literatura, livretos de cordel. Eu fui para Chicago, me isolei e escrevi o livro.

PET - Quanto à adaptação do livro As pelejas de Ojuara para o cinema, o que achou?

NL - Dá para ver, mas no livro Ojuara além do personagem principal tem histórias paralelas que dão mais humor ao romance e essas histórias sumiram todas, como a do Tião Pé de Santo que tinha o maior chulé do mundo e o Galego Assis, o mentiroso. E eu acho que por isso ficou mais ou menos.

PET - Algumas pessoas criticam o seu “regionalismo excêntrico”. Qual seu objetivo ao optar por uma linguagem menos valorizada na sociedade?

NL - Eu não ligo. Não vou deixar de escrever palavrão porque fere o ouvido de fulano. Eu quero que a sociedade se lasque! Eles que deixem de ler! Nas Pelejas de Ojuara, costumo dizer que tem “um mata burro” nas primeiras páginas, aquela quadrinha do “barbeiro de buceta.” Porque muita gente, quando chega naquela parte, não lê mais. Eu acho ótimo! (risos).

PET - O espaço geográfico de seus romances passa por diversas cidades do Estado. Você conheceu todas elas ou as pesquisou? Voltaria a morar no RN?

NL - Conheci a maior parte. Gosto de Natal, venho sempre aqui, tenho família aqui, mas não penso em voltar para Natal. Tenho minha família no Rio, estou muito satisfeito no Rio, apesar dos bueiros que voam.

PET - Tem algum inédito na gaveta, está trabalhando em algum projeto?

NL - por encomenda. Estou escrevendo uma peça para o teatro, para João Goes, “As aventuras do Galego Assis.”

PET - Dos escritores potiguares, quais você acha que mereciam mais divulgação?

NL - Tem um bom romancista que é pouco conhecido que é François Silvestre. Que trabalhou na Fundação Jose Augusto e tem um livro muito bom. É impressionante como não há romancistas aqui no Rio Grande do Norte. Não há romancistas, mas poeta tem demais.

PET - Qual sua relação com as mídias tecnológicas?

NL - Adoro a internet. Imagina escrever 300 páginas numa máquina de datilografia? Era terrível, uma coisa horrorosa. Gosto da internet, mas não de brincar e sim para fazer pesquisas e para escrever.

PET - Conselhos para os que almejam ser escritores.

NL - Ler, ler, e ler. De vez em quando tentar escrever alguma coisa, mas é complicado. A leitura é importantíssima, hoje em dia com essa internet a juventude lê cada vez menos. É um absurdo.

PET - Quais seus projetos para o futuro?

NL - Eu gostaria de escrever mais romances, mas eu não sei se vêm. Eu gostaria muito de escrever. Escrevi aquele Fortaleza dos vencidos e estou inconformado e preciso ter força para escrever e vontade de seguir adiante para escrever um romance. Já poesia me dá mais prazer, mas não é mais fácil. Mesmo com a facilidade que eu tenho, não estou conseguindo escrever poesia. É muito chato isso.